
Correspondente de guerra, a jornalista norueguesa Åsne Seierstad aproveitou a sua estada no Afeganistão e escreveu um ótimo livro relatando, principalmente, a cultura afegã.
Logo no prólogo a autora justifica a sua escolha em retratar a vida da família Khan. “Num país em que ¾ da população é analfabeta, o dono de uma livraria, letrado, com uma suposta boa condição de vida é algo um tanto quanto incomum”.
Sultan Khan, o “chefe” da família, apesar de todo o seu estudo, transparece o típico homem afegão: patriarcalista, tirano, conservador às mudanças e costumes. Dono de uma grande e influente livraria em Cabul, presencia a queima do seu trabalho três vezes. Uma durante a invasão russa, outra pelos mujahedin e a mais recente, pelos talibãs. Devido à total ignorância e ao fanatismo religioso, figuras e imagens eram proibidas durante esses regimes totalitários. Deviam ser queimadas e extintas, uma vez que para quem não sabe ler nem escrever, pinturas e fotografias representam uma ameaça aos preceitos impostos.
Embora Sharifa – a primeira mulher – e sua mãe e irmãs sejam contra, Sultan casa-se novamente, agora com Sonya, uma adolescente de 16 anos. Opiniões femininas não são respeitadas, nem aceitas. Uma escravidão disfarçada insiste em permanecer nos países muçulmanos.
Dois acontecimentos no livro marcaram-me bastante. O primeiro deles relata o banho das mulheres e seus filhos no Balneário público. Banheiros com chuveiros são quase inexistentes no Afeganistão. Retira-se a sujeira do dia do corpo através de pequenas bacias com água, e são limpos apenas os pés, as mãos e o rosto. Um banho “completo” nesses Balneários acontece numa freqüência média de uma vez por mês. Crostas cinzas da mistura de poeira, areia, gordura e lixo são esfregadas de forma violenta, até a “pele ficar rosa e esfolada”. Mais uma vez pensei e revoltei-me. Infelizmente a questão da água não é uma simples brincadeira. Não precisamos ir às áreas desérticas do globo para percebermos que a falta de água é um problema. A seca e o racionamento estão do nosso lado, dentro do Brasil e do Rio Grande do Sul. Será que a consciência virá apenas quando todos tomarmos banho igual aos afegãos?
A outra cena aborda o roubo de alguns cartões postais da livraria de Khan e a conseqüente prisão do ladrão. Não defendo bandidagem, mas a ação despertou o meu lado humano (se é que ainda posso usar essa expressão para caracterizar meus sentimentos), a minha compaixão e a minha indignação com a brutalidade e indiferença do acusador. O acusado (escapa-me o nome agora) trabalhava na livraria e sustentava uma família de cerca de 15 pessoas, dentre elas mãe, avó, esposa, filhos pequenos e irmãs. A fome e a subnutrição das crianças levaram o pai ao furto de 300 cartões, “impressos por um afghani e vendidos por, no mínimo, cinco”. Após a descoberta, o pedido de desculpas, a devolução dos cartões, a promessa de trabalho gratuito a fim de pagar a quantia roubada, Mansur – filho mais velho de Sultan – é encarregado do caso até a volta do pai do Paquistão. O progênito decide por esquecer a confusão, todavia seu pai é irredutível, e o acusado é preso, deixando a mercê da miséria e da degradação mulheres e crianças.
Finalizei a leitura do livro mais revoltada, inconformada e desesperançosa. Talvez por saber que existe muito mais do que li e que sozinha não posso fazer nada para mudar – e ninguém fará nada para me ajudar.