sábado, 8 de dezembro de 2007

Jornalisticamente Incorreto




Pernambucana de Recife, Marilene Felinto é jornalista e escritora, além de alguns trabalhos como tradutora. Em seu livro Jornalisticamente Incorreto, reúne crônicas publicadas ao longo de 1997 a 1999 no jornal Folha de São Paulo, onde trabalha atualmente como colunista. Através de uma escrita direta, crítica e, pode-se dizer também, sarcástica, Marilene aborda temas de convívio comum a todos nós – política, futebol, religião, desigualdades sociais, amor, além de, claro, a imprensa e o jornalismo. Aliás, o próprio título do livro refere-se à incapacidade da autora em encaixar-se nas normas e condutas pré-impostas da mídia jornalística. Não me ajusto ao jogo de blefes e cartas marcadas que é o jornalismo contemporâneo.

Suas crônicas são repletas de raiva, nojo, uma descrença na sociedade da época (a sociedade também não mudou muito nestes últimos oito anos; tudo o que está escrito pode facilmente ser transportado para a atualidade). Escreve como Clarice Lispector certa vez disse: sem esperança do que eu escrevo altere qualquer coisa, não altera em nada. Tudo parece ser um grande desabafo frente à hipocrisia generalizada que se tornou a vida humana, e isso é o que torna seu livro tão envolvente e verdadeiro. Torna-se impossível não se identificar com pelo menos um dos seus diversos pontos de vista, se não com todos. A escrita perturbadora da autora, no mínimo, fará com que o leitor finalize a leitura e reflita sobre os assuntos retratados com menos ilusão do que o que nos é imposto todos os dias.

“É por isso que, ópio por ópio, cada vez mais gente (rica e pobre, que a Igreja xinga de “apóstatas”) anda preferindo ficar em casa cheirando cocaína e fumando maconha. Pelo menos a ilusão é muda, não fala, não cospe regras de vida e doutrinas incongruentes, não diz besteiras de altar e púlpito. A humanidade – e seus profundos enigmas, que a religião tenta responder – nunca esteve tão perdida, tão enganada e só.” (Ressonância: pobres e ignorantes vão à Igreja, p. 347)

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Morcegos Negros




Após cobrir a morte de Paulo César Farias em Maceió em 1996, o repórter da Folha de São Paulo, Lucas Figueiredo, dedicou-se a investigar os mistérios dessa morte e de todos os outros esquemas, até hoje nunca resolvidos, envolvendo PC e Collor. Assim surgiu Morcegos Negros, um livro de jornalismo investigativo, que mais parece uma novela policial. Clóvis Rossi, jornalista responsável pelo prefácio do livro, o define como uma história política e uma história policial. Mas não é novela, não é ficção. É a dura e triste realidade a que foi reduzido o Brasil no período Fernando Collor de Mello: a política transformada em noticiário policial.

Em capítulos intercalados, indo e voltando no tempo, Figueiredo retrata a história de Farias e Collor e suas relações com a máfia, através de documentos e informações que a impressa brasileira não divulgou. Traça a trajetória de Collor, desde o início de sua vida política, até seu auge chegando à presidência da República, e sua relação com o tesoureiro da campanha, Paulo César Farias. Assim, transpassa os anos e as diversas contas bancárias abertas no exterior, os desvios e transferências de dinheiro e conexões do Esquema com a máfia e o crime organizado internacional, além da morte de PC e sua namorada, Suzana Marcolino – onde demonstra como a polícia e a mídia omitiram a verdade a respeito dela, ignorando laudos da perícia e considerando outros totalmente improváveis.

Um livro envolvente, apaixonante, e extremamente curioso. A falta de memória do povo brasileiro é sutilmente criticada, através dos capítulos que versam a respeito dos anos de exílio de Collor e seu preparo para o retorno à vida política – sendo, aliás, eleito agora, nas eleições de 2007, senador de Alagoas, mas isso ainda não havia acontecido até o lançamento do livro. Morcegos Negros vale muito a pena ser lido, principalmente para não nos tornarmos parte integrante dessa população com amnésia.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

A Bagagem do Viajante




Quem escreve, penso eu que o faz como no interior de um cubo imenso, onde nada mais existe que uma folha de papel e a palpitação de duas mãos, rápidas, hesitantes, asas violentas que de súbito descaem para o lado, cortadas do corpo. Quem escreve tem à sua volta um deserto que parece infinito, reino cuidadosamente despovoado para que só fique a imagem surreal de um campo aberto, de uma mesa de escriturário à sombra da árvore inventada, e um perfil esquinado que tudo faz para assemelhar-se ao homem. Quem escreve. Penso eu que procura ocultar um defeito, um vício, uma tara aos seus próprios olhos indecente. Quem escreve, está traindo alguém. (p. 117)

José Saramago

sábado, 8 de setembro de 2007

A Paixão Segundo G.H.




Em A Paixão Segundo G.H., Clarice Lispector mostra porque é considerada a maior expressão do intimismo literário brasileiro. Um livro que não tem começo nem fim, ele simplesmente continua. Filosofias e questionamentos existenciais preenchem por completo as mais de duzentas páginas, tornando, assim, a leitura extremamente intensa e perturbadora. Impossível ler até a última linha sem nos perguntarmos para o que servimos afinal? Até que ponto a nossa vida atingiu o estado de mediocridade?

G.H., narradora-personagem, conduz a narrativa de seu cotidiano até o momento de sua quebra. Um dia como outro normal, acorda, toma café, fuma seu cigarro. Até que decide algo diferente: arrumar o quarto da empregada que havia demitido há pouco tempo. Lá chegando, espanta-se. Encontra um ambiente diferente do que imaginava; estava arrumado, limpo, conservado. Isso a perturba de tal forma que se inicia um processo de “análise” de sua existência, uma busca por sentido. Todo momento de achar é um perder-se a si próprio.

Até que encontra uma barata. Uma simples barata saindo do armário. Aquele bicho que sempre a repugnou, desde criança, e nunca teve coragem nem de chegar perto; esse bicho irá trazer um novo significado a sua vida. Ele proporcionará o momento mais famoso das obras de Lispector: a epifania. Esmagar a barata, lamber e mastigar o líquido branco que escapa do seu interior e, por fim, vomitar tudo aquilo, personifica o momento de encontro com um novo “eu”, com uma G.H. não mais comum, previsível, rotineira, mas sim, com alguém contrário ao normal, ao pré-estabelecido. O mundo independia de mim – esta era a confiança a que eu tinha chegado: o mundo independia de mim, e não estou entendendo o que estou dizendo, nunca! Nunca mais compreenderei o que eu disser. Pois como poderia eu dizer sem que a palavra mentisse por mim? Como poderei dizer senão timidamente assim: a vida se me é. A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro.

Considerada por alguns como a obra prima de Clarice – e não é difícil enxergar o porquê -, A Paixão Segundo G.H. é mais do que um mero livro, é um achar-se em si próprio. Assim, proponho também uma mudança: suspenda suas sessões no psicólogo; vá ler Clarice Lispector.

domingo, 5 de agosto de 2007

O dia em que Getúlio matou Allende, e outras novelas do poder




“Nestas novelas do poder, nada é inventado e tudo em verdade ocorreu. Se, ao longo do relato, a trama se desenvolve como num romance em que as paixões se exteriotizam no amor e no ódio, na ilusão e no sonho, na vaidade e no embuste – ou se atritam entre si, como na ficção convencional -, tudo se deve a que, nas profundezas do seu íntimo, a realidade é assim: soa como ficção”.

Flávio Tavares, jornalista, formado em Direito, presencia os fatos de maior importância da história brasileira e mundial do século passado – ascensão e queda de Vargas, Ditadura Militar, Segunda Guerra Mundial, conflitos da Guerra Fria. Através da experiência como líder da UNE e, posteriormente, como jornalista, o autor recria memórias e acontecimentos ilustres do ambiente político.

O título insinua uma alegoria. Os dois primeiros capítulos falam de Salvador Allende e de Getúlio Vargas. Ao lê-los, percebe-se o porquê do autor sugerir esse título. Através de uma conversa com o presidente chileno na Antiga URSS, Tavares capta certo encanto nos olhos de Allende ao contar sobre o suicídio de Vargas e o fato disso ter, de certa forma, imortalizado com heroísmo o antigo ditador brasileiro. Com a sua queda em 1972, e posterior morte em 1973 – a versão (quase) oficial remonta ao assassinato pela polícia americana. –, o autor sugere que Allende suicidou-se também, a fim de, assim como Getúlio, imortalizar-se frente à história mundial e, principalmente, de seu país. Aí surge o título. “O título é uma metáfora ou alegoria. Mas, ao brotar de algo vivido, é uma alegoria que passa a ser real”.

Passando por Dutra, JK, Jânio, Jango, Castello Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel, Figueiredo, e outras figuras da cena internacional – Perón, de Gaulle, Che Guevara, Frida Kahlo -, Flávio Tavares nos transmite o que significava viver naquela época. Os medos, as incertezas, os conflitos, tudo aparece em O dia que Getúlio matou Allende, da forma mais sutil e dinâmica possível. Um relato, que como o próprio autor diz, confunde-se totalmente com a ficção.

Talvez a realidade seja isso mesmo, uma mera história de ficção.

sábado, 21 de julho de 2007

Elite da Tropa



Desta vez não escreverei uma resenha. Será apenas a minha opinião, uma vez que nem cheguei a finalizar a leitura.

Embora tenha lido unicamente as primeiras 45 páginas, foi-me o suficiente para saber que não seria produtivo seguir adiante. Antes de iniciar a leitura, analisei na contracapa o perfil dos escritores: Luiz Eduardo Soares, um dos antropólogos de maior reconhecimento nacional, quase um PhD, e dois chefes da Polícia Especial Brasileira, André Batista e Rodrigo Pimentel, os dois pós-graduados em Ciências Políticas. Pensei "O livro deve ser interessante. Pessoas cultas, inteligentes, estudiosas trabalharam juntas. Deve-me acrescentar algo". Não acrescenta nada.

O vocabulário é chulo, sujo, barato. As frases são mal formuladas. Além da desnecessária enorme quantidade de palavrões. A tentativa de atrair um público mais abrangente desatraiu-me completamente. O português foi sacrificado pelas mãos desses três homens.

Não adianta, existem pessoas e pessoas. Umas possuem um talento especial para a escrita literária, escrevem com qualidade, sem apelar a nada ou a ninguém. Outros, deveriam recolher a sua insignificância e ficar bem longe das canetas e computadores. Infelizmente, esses são os que mais se proliferam ultimamente. Neste mundo, onde o que mais vale são os bons marketing e publicidade - e o povo ignorante que se deixa abduzir por isso -, não há quase espaço para os escritores de real qualidade. Mas eles não são uma abstração, existem sim. Portanto, busquemo-os!!

quinta-feira, 5 de julho de 2007

Istambul - Memória e Cidade


Vencedor do Prêmio Nobel de Literatura por Neve ano passado, Orhan Pamuk é considerado um dos maiores nomes da literatura turca e contemporânea. Devido a ameaças sofridas por condenar a fatwa (sentença de morte imposta pelo aiatolá Khomeini ao escritor indiano Salman Rushdie, por "ofender" Maomé) e denunciar o genocídio armênio pelos otomanos, o autor auto-exila-se de seu país de origem e passa a viver em Nova York.

Normalmente, biografias utilizam-se de cenário e espaço apenas para dar cor à história de alguém. Em Istambul, ocorre exatamente o contrário. Pamuk recria a história de sua cidade através de lembranças e sentimentos de sua própria vida. Os passeios pelo Bósforo (estreito que separa a Europa da Ásia), as feiras de ortifruti, os incêndios, os literários, e, até mesmo, os dicionários: tudo faz parte da vida do autor, mas também da vida de toda Istambul.

As diversas fotografias contidas ao longo do livro contribuem para um maior envolvimento do leitor com o relato. Muito bem dispostas, nas páginas corretas, proporcionam uma sensação de vivência daquela história, uma percepção de que estamos presenciando aquelas imagens.

Através de uma linguagem em tom melancólico – no caso, hüzun, palavra turca que denomina essa melancolia -, Orhan quebra alguns tabus referentes à cidade. O principal diz respeito ao modo como os moradores sentem-se em relação a sua terra natal. Apesar dos estrangeiros enxergarem-na como parte ainda do Império Bizantino e admirarem incondicionalmente as ruínas de Constantinopla, seus cidadãos não – muitas vezes, inclusive, sentem vergonha de morarem unicamente entre ruínas. É bonito apenas para quem vê de fora, uma vez que para seus habitantes representa a decadência e a pobreza não só de Istambul, mas também de toda Turquia. Sentir essa hüzun é ver as cenas, evocar as memórias em que a própria cidade torna-se a exata ilustração, a essência da mesma, da hüzun.

Memória e cidade. E uma nova ótica a respeito de um dos locais mais importantes e influentes do milênio passado.

domingo, 1 de julho de 2007

Literatura e Revolução



Literatura e Revolução
inicia-se sem a intenção de tornar-se um livro; são apenas alguns ensaios sobre literatura reunidos que Leon Trótski escreve ao longo das décadas de 1910 e 1920.

Em 1923, é lançada a primeira edição completa. Além dos ensaios, consta uma grande crítica e análise aludindo a posição das obras artísticas frente a movimentação da Revolução Comunista na Rússia. Refuta fortemente os poetas parnasianos e suas poesias vagas, sem conteúdo; elogia aqueles que escrevem sobre sentimentos, sendo, muitas vezes, não compreendidos; e propõe um novo conceito, uma nova arte: a proletária. Lembra bastante o histórico da década de 20 aqui no Brasil - a Semana de Arte Moderna, a luta contra os parnasianos e os simbolistas, as inovações e as preocupações perante a realidade social e política do país.

Outra característica marcante da obra de Trótski é a presença de conceitos religiosos comunistas, o ateísmo. Sendo a religião uma discussão sempre polêmica, o autor aborda o assunto de forma sutil, através de frases conclusivas ao final de relatos. "Nascemos em Deus, morremos em Cristo e o Espírito Santo irá nos ressuscitar". É reconfortante, mas realmente não muito claro. A respeito da morte de um artista: Biely é um cadáver. E não ressuscitará em espírito algum, seja ele qual for.

Trótski nos proporciona uma belíssima leitura. Independente das crenças de cada um, o livro já vale apenas pela abordagem política e histórica do momento. A partir desse mínimo, fica a critério de cada um se as áreas cultural, religiosa e mesmo sentimental ficam somente como conhecimento ou se são levadas como crescimento pessoal.

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Vastas emoções e pensamentos imperfeitos



Cinema. Carnaval. Pedras preciosas. Assassinatos. Roubos. Fugas. Esse é o pano de fundo de Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, quarto romance de Rubem Fonseca. Escrito em 1988 e vencedor dos Prêmios Pedro Nava do Museu de Literatura e Giuseppe Acerbi, pela adaptação italiana Vaste emozione e pensieri imperfeti.

O narrador, cineasta, envolve-se em uma trama típica de filmes de ação. Uma mulher, ameaçada de morte, implora abrigo em sua casa e lhe entrega uma caixa repleta de pedras preciosas. Um dia volto para buscá-las. Passam-se dois dias e a notícia de que fora assassinada. Simultaneamente, um homem encapuzado passa a perseguir o cineasta. Esse decide vender algumas pedras e partir rumo à Europa, onde fora convidado a filmar uma adaptação do escritor russo, Issak Bábel.

Pesquisando obras, estilo literário e vida do autor, acaba obcecado. Assim, ao receber proposta do seu chefe para cruzar o Muro de Berlim e "comprar" um manuscrito inédito de Bábel, aceita apenas para roubá-lo e, logo em seguida, partir. Chegando no Brasil, é raptado e levado a Minas Gerais, aonde vivencia o desfecho do caso das pedras preciosas. E o manuscrito, descobre tratar-se de um ensaio assinado por outro escritor, referente a obras de I.B.

Rubem Fonseca, mais uma vez, prende a atenção de seu leitor através de seu enredo envolvente e de sua escrita dinâmica. Misturam-se sentimentos; o sonho e a realidade confundem-se. Perdemo-nos num mundo de vastas emoções e pensamentos imperfeitos.

sexta-feira, 15 de junho de 2007

Morte em Veneza




Morte em Veneza
parece ser uma grande metáfora para um aviso de Thomas Mann a seus conterrâneos: aonde essa "paixão e arrebatamento" irá leva-los? Publicado em 1912, o autor utiliza-se de uma grande obsessão pela beleza para alertar sobre os perigos de uma Alemanha (o autor nasce em Lübeck e é criado em Munique) crescente, no risco iminente de destruição pela guerra.

Gustav von Aschenbach é um escritor perfeccionista em seus textos; escreve formalmente, escolhe verbos e palavras não ao acaso, mas com extremo rigor. Ingressa em uma viagem rumo a Veneza, sua cidade dos sonhos, no qual é impedido de viver pelo fato de que a cidade o "adoece". No hotel, avista Tadzio, um adolescente supostamente perfeito fisicamente. Começa aí a fascinação - conseqüentemente, a decadência. Aschenbach transcorre seus dias observando-o, olhando-o, analisando-o, descrevendo seus traços bem delimitados e delineados. A escrita do autor, abundante de adjetivos, acaba por pôr-nos defronte de um deus grego - claro que para isso acontecer, devemos acreditar piamente no que estamos lendo.

Surge a cólera. Uma epidemia alastrada, que dizimará todos aqueles que não escaparem da região. Gustav, em sua louca obsessão, opta por permanecer na cidade, encontrar Tadzio, alerta-lo da epidemia, manda-lo embora. Assim, a busca pela perfeição causa a degradação e a morte do escritor. A sua morte em Veneza. E, ainda no mesmo dia, um mundo respeitosamente comovido recebeu a notícia de sua morte.

Embora escrito no início do século XX, o tema proporciona debates filosóficos até hoje. Até onde ir por uma obsessão, por uma busca desenfreada? Até onde chegar para saciar uma vontade ou um capricho? Vale a pena a sacrificação do ser humano? Fica o questionamento.

A Hora da Estrela




Em seu último livro publicado (morre no mesmo ano, 1977), Clarice Lispector escreve sobre Macabéa, uma alagoana de 19 anos, medíocre e sem qualquer perspectiva de vida. Uma grande personagem para as análises psicológicas e existenciais da autora.

Através de Rodrigo S.M., o primeiro narrador do sexo masculino de seus romances, percebemos traços claros das opiniões e da escrita de Lispector. Cria-se um "quase" heterônimo; os dois confundem-se em uma só pessoa - nas primeiras páginas do livro, inclusive, encontramos a Dedicatória do autor, com o sub-título Na verdade Clarice Lispector. A ucraniana naturalizada brasileira adota um estilo de narração em que pensamentos próprios podem ser escritos sob a forma de deboche ou ironia ("...para uma escritora mulher pode lacrimejar piegas...") sem que isso afete em nada sua principal característica, o intimismo psicológico.

As 87 páginas de A Hora da Estrela consistem numa busca constante por um sentido na vida, por uma descoberta. Na verdade, parece que Rodrigo S.M. se utiliza da história de Macabéa para questionar-se sobre a sua própria vida (embora não haja nenhum traço de biografia do narrador).

A nordestina é uma pessoa burra, ingênua, sem personalidade nem iniciativa. Ao perguntarem sua opinião, responde, simplesmente, "não sei". Quando fora demitida pelo chefe, acatou a decisão sem questionar, desculpando-se, ainda, pelo incômodo. O mesmo ocorreu ao ser "trocada" por Glória - sua colega de trabalho - pelo seu namorado. Decide ir a uma cartomante, única e exclusivamente porque lhe disseram que seria bom. Lá, Madame Carlota revela que seu futuro irá mudar: será rica e desejada; encontrará, em seu caminho, um estrangeiro. Saindo da consulta, feliz pelas previsões, é atropelada por uma Mercedes-Benz (provavelmente esse o seu "estrangeiro rico") e descobre-se internamente. As famosas epifanias de Clarice Lispector, normalmente ligadas à náusea, ocorrem nesse instante. Macabéa encontra-se, na morte, como a pessoa insignificante que sempre fora, não fazendo diferença a sua existência, ...existem outros bilhões no mundo. Seu momento máximo: Nesta hora exata Macabéa sente um fundo enjôo de estômago e quase vomitou, queria vomitar o que não é corpo, vomitar algo luminoso. Estrela de mil pontas.

Clarice é marcada na literatura brasileira como uma das leituras mais fortes e intensas, o que é comprovado lendo-se A Hora da Estrela. Não só pela ótima escrita, pela perfeita formulação do enredo, mas, principalmente, pelo crescimento interno proporcionado que Clarice Lispector, definitivamente, deve ser lida.

Lolita




Lançado em 1955, Lolita é um livro que, a sua época, teve um grande valor cultural. Até hoje, faz parte da lista dos maiores clássicos da literatura mundial, além de contar com duas adaptações cinematográficas e inspirar tantas outras. Vladimir Nabokov acerta ao escrever sobre um tema pouco discutido - e divulgado - na primeira metade do século passado: o amor obsessivo, doentio e cruel, que não seria tão chocante se não fosse também pedófilo.

Humbert Humbert escreve sua história enquanto está na prisão, aguardando julgamento por homicídio. A cada página, presenciamos e sentimos a devoção e o amor desse louco para com Dolores Haze, a "sua Loli". O que para a ninfeta de 12 anos parecia uma brincadeira, de início um "confronto" com sua mãe, para o quarentão era uma doença. Enquanto Dolly apreciou a diversão, Humbert aparentou ser um sujeito normal. Entretanto, quando a mãe de Lolita - e também esposa de H.H. - morre, esse divertimento segue outro rumo. O ciúmes e o medo da perda fazem com que Humbert "rapte" Dolores de seu internato. Fogem da cidade; percorrem muitas outras, sem destino. Perdendo sua liberdade, sua convivência social, sendo abusada todo dia pelo padrasto, Loli, em cumplicidade com seu professor de teatro, planeja uma fuga. Obtendo sucesso, acaba encontrando outro pervertido, o qual ela julga ser sua grande paixão, que a engravida três anos mais tarde.

Humbert casa-se novamente, embora nunca tenha esquecido sua ninfeta. Sua loucura chega ao extremo no momento em que deseja vingar-se de Quilty - o suposto responsável pela perda de Lolita, aquele que a ajudou a fugir -, matando-o, finalizando, assim, sua narrativa.

Lendo Lolita conhecemos a mente de um insano que, como todos os outros, acredita estar correto em suas ações. Infelizmente, hoje, o livro não nos acrescenta nada de novo, uma vez que a demência está tão corriqueira e não nos surpreende mais. A leitura vale como um conhecimento cultural, apenas.

Clássicos da Poesia Brasileira




Em 1997, a Zero Hora lançou uma série de livros titulados "Biblioteca ZH". A proposta era proporcionar ao público em geral algumas das obras mais importantes da literatura nacional por um preço acessível. Além da óbvia intenção de lucro, existia a de expandir a cultura neste país tão escasso dela. De todos os lançamentos, acredito ser o de maior importância o dedicado à poesia brasileira anterior ao Modernismo.

Atravessando seis períodos literários - Barroco, Arcadismo, Romantismo, Parnasianismo, Simbolismo e Pré-Modernismo - e vinte autores reconhecidíssimos, o livro oferece os poemas mais conhecidos e os nem tanto de cada artista na íntegra, travando, assim, uma junção entre conhecimento e rememoração. Dentro da primeira periodização, lemos os poemas líricos e satíricos de Gregório de Matos Guerra, e apreciamos parte da obra de Botelho de Oliveira - não tão conhecido, ao menos aqui no sul. No Arcadismo, temos Cláudio Manuel da Costa e sua pastora Nise; Tomás Antônio Gonzaga com Marília de Dirceu e Cartas Chilenas; a poesia épica indianista de Basílio da Gama em O Uraguai; e, finalmente, Alvarenga Peixoto. O Romantismo é representado em suas três fases. Gonçalves Dias exalta a pátria no famoso Canção do Exílio e o indianismo em I-Juca Pirama. Álvares de Azevedo, Junqueira Freire (Estou cansado de vencer o mundo/Quero vencer o inferno - Desejo, Hora De Delírio), Casimiro de Abreu (Oh! que saudades que tenho/Da aurora da minha vida/Da minha infância querida/Que os anos não trazem mais - Meus oito anos) e Fagundes Varela representam a geração do Mal do Século, influenciados pelo Lord Bryon. O condoreiro Castro Alves e o excêntrico Joaquim de Sousândrade finalizam o capítulo.

A transcendentalização consiste na principal característica do Simbolismo. Dessa forma, a obsessão pela cor branca de Cruz e Sousa remete à busca pela purificação. Enquanto Pedro Kilkerry opta por uma poesia sintética e desconsertante, a de Alphonsus de Guimaraens, autor de uma das minhas poesias favoritas Ismália, é musical. O fechamento da leitura é dado ao sincretista Augusto dos Anjos (Se a alguém causa inda pena a tua chaga/Apedreja essa mão vil que te afaga/Escarra nessa boca que te beija! - Versos Íntimos).

Essa antologia cumpre o seu papel. Faz com que nós, leitores, busquemos outras obras para ler e que apreciemos mais nossa literatura em versos.

Faço das palavras do professor Frederico Barbosa - responsável pela apresentação da edição - as minhas: "Se o intuito desta coleção ímpar é ajudar a fazer do Brasil um país de leitores, o deste volume é o de estimular e possibilitar a leitura de poesia, tão desprezada entre nós. O nosso país não carece de poesia ou de sensibilidade. Se faltam leitores, é porque não lhes são dadas oportunidades como esta: acesso fácil ao que há de melhor. A semente está lançada".

O Diário de Anne Frank




Annelise Frank, dos 13 aos 15 anos, retrata seu dia a dia de confinamento durante a 2ª Guerra Mundial em seu diário. Judia holandesa, temendo o holocausto e os alemães, divide o "Anexo Secreto" - um esconderijo dentro de um escritório ao lado do mercado - com seu pai, sua mãe, sua irmã Margot, o Sr. e Sra. Van Dann e seu filho Peter - posteriormente, também com Dussel. Após sua morte, seu diário foi recolhido, editado e lançado por Otto H. Frank, seu pai, e Mirjam Pressler.

O modo de vida precário levado por essas oito pessoas revela uma realidade não apenas judia, no meio do século XX, mas de todos os envolvidos na Guerra. A falta de comida e a sua ingestão mesmo quando estava podre ou estragada, a escassez de vestimentas novas e em quantidades suficientes para suportar o frio. Em escala menor, a falta de higiene em excreções e banhos, a desvalorização da moeda local e o rápido aumento dos preços dos produtos, a perda total da liberdade.

Se tudo isso fosse escrito sob um foco histórico e político, o livro seria ótimo. Infelizmente, o que menos se encontra nas páginas são abordagens sobre a Guerra. Anne Frank entretinha-se mais escrevendo sobre as brigas familiares, sobre os livros que lia, sobre as festas de aniversário (ela gastou mais folhas descrevendo os presentes ganhos do que relatando o Dia "D") e sobre sua paixonite por Peter.

Com uma escrita ruim, monótona, tendenciosa para o lado dos Aliados ("Os ingleses são os nossos heróis") e totalmente não convincente ( apresentem-me a criança de 13 anos que utiliza palavras como "almejar" e "eminência" em seu diário), o livro não agrada. Mais uma prova concreta de que com um bom marketing vai-se longe, uma vez que o próprio O Diário de Anne Frank já tem várias edições - e reedições -, uma versão cinematográfica e continua sendo reconhecidíssimo e aclamado pelo mundo afora.

Machado de Assis




Machado de Assis é o maior nome do Realismo Brasileiro e um dos maiores de toda a nossa Literatura. Jornalista, contista, cronista, romancista, poeta e teatrólogo, nasceu no Rio de Janeiro/RJ, em 21 de junho de 1839 , e faleceu também no Rio de Janeiro, em 29 de setembro de 1908. De saúde frágil, epilético, gago, mulato e pobre, enfrentou os mais diversos preconceitos a sua época. Ainda assim, deixou um legado de inteligência e de talento indiscutível, que já atravessa quase dois séculos.

Fundador da Cadeira nº 23 da Academia Brasileira de Letras, ocupou por mais de dez anos a presidência da Academia, passando, posteriormente a sua morte, a ser chamada também de Casa de Machado de Assis. Convida seu grande amigo José de Alencar (Romantismo Brasileiro) para ocupar o cargo de seu patrono.

Em 1881, lança Memórias Póstumas de Brás Cubas, simultaneamente com O Mulato de Aluíso Azevedo, dando início, assim, ao Real-Naturalismo Brasileiro.

Machado, através de sua sutil ironia, convida seus leitores a levarem mais a fundo sua obra - tanto que até hoje o autor inspira projetos e trabalhos estudantis e profissionais. Seu modo de escrever é único. A perspicácia em suas palavras - escolhidas "a dedo" - pedem uma leitura atenta. Poucos o entendem, justamente por não se deliciarem, calmamente, com a irônica análise psicológica de seus personagens.


Comédia

Desencantos, 1861.
Tu, só tu, puro amor, 1881.

Poesia

Crisálidas, 1864.
Falenas, 1870.
Americanas, 1875.
Poesias completas, 1901.

Romance

Ressurreição, 1872.
A mão e a luva, 1874.
Helena, 1876.
Iaiá Garcia, 1878.
Memórias Póstumas de Brás Cubas, 1881.
Quincas Borba, 1891.
Dom Casmurro, 1899.
Esaú Jacó, 1904.
Memorial de Aires, 1908.

Conto

Contos Fluminenses, 1870.
Histórias da meia-noite, 1873.
Papéis avulsos, 1882.
Histórias sem data, 1884.
Várias histórias, 1896.
Páginas recolhidas, 1899.
Relíquias de casa velha, 1906.

Teatro

Queda que as mulheres têm para os toloes, 1861.
Desencantos, 1861.
Hoje avental, amanhã luva, 1861.
O caminho da porta, 1862.
O protocolo, 1862.
Quase ministro, 1863.
Os deuses de casaca, 1865.
Tu, só tu, puro amor, 1881.

Netto perde sua alma




Tabajara Ruas recria o cenário gaúcho e sul-americano do século XIX em Netto perde sua alma. Através de seis capítulos não cronologicamente organizados, relata a Revolução Farroupilha (1835-1845) e a Guerra do Paraguai (1864-1870) sob a ótica e vivência do proclamador da República Rio-grandense, General Netto. Por obter-se poucas e incompletas notas bibliográficas sobre esse personagem, o próprio autor diz: "Este romance não é, portanto, a história de Antônio de Souza Netto. É uma ficção a seu respeito, uma invenção, um sonho - meu, e de outros homens".

Madrugada de 1º de julho de 1866, segundo ano da guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai. Encontra-se, no Hospital Militar Corrientes, República Argentina, o general Netto, ferido e sofrendo de grandes febres causadas pela Malária. No mesmo quarto encontram-se o capitão de Los Santos - cujas pernas foram amputadas pelo tenente-coronel Fointainebleux - e o major Ramírez - também ferido e sem o olho direito. Em visita, surge o sargento Caldeira - companheiro de batalhas de Netto e comandante do 1º Corpo de Laceiros -, porém não se sabe se em alucinações ou na realidade. General e sargento conversam e relembram tempos passados.

Voltamos vinte e seis anos, quinto ano da rebelião rio-grandense. Conversas com Bento Gonçalvez, encontro com Milonga - escravo e futuro soldado - e luta com índios charruas. Quatro anos antes, 1836, cento e oitenta combatentes morrem em apenas um dia. Netto, um dia antes de proclamar a República, pede mais cautela, "desencadear uma guerra não é uma virtude".

O texto avança nove anos; pára em 2 de março de 1845: fim da revolução. Um sentimento de fracasso atinge os postos mais altos do exército republicano. Milonga revolta-se contra o general, "para todos os homens negros a guerra não acabou", ameaça matá-lo. É morto antes de disparar por Caldeira.

Durante o exílio no Uruguai, Netto envolve-se novamente com ambições libertárias. Ano de 1861. Discussões sobre a ditadura de Solano López, sobre os reais motivos para iniciarem-se esses novos conflitos e sobre os interesses ingleses em ver o Paraguai destruído. O amor descoberto em Maria Escayola.

O livro acaba por onde começou, Hospital Corrientes, 1866. Netto e Caldeira assassinam Fointainebleux e de Los Santos- dois homens frios e calculistas que, certamente, seriam condecorados heróis no fim da guerra. "Matamos aqueles dois animais por motivos humanitários". Fica ao critério do leitor interpretar essas últimas (e primeiras) cenas como delírio ou realidade. Logo após, ocorre a morte de Netto.

Tabajara Ruas retrata duas guerras com sentimento, dá emoção aos personagens, vozes aos seus corações. Sua escrita envolvente e sedutora faz de Netto perde sua alma uma obra incrível. O mesmo vale para sua adaptação cinematográfica, vencedora de diversos prêmios, incluindo 4 Kikitos no Festival de Cinema de Gramado.

Auto da Compadecida




Lançado em 1955, Auto da Compadecida é, certamente, o maior sucesso do escritor paraibano Ariano Suassuna. Desde lá, foi traduzida para diversos idiomas, foi encenada na Alemanha, Espanha, Estados Unidos, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Israel, Polônia, Portugal, Suíça e República Tcheca e ainda conta com três versões cinematográficas, sendo que a última delas primeiro foi uma minisérie.

Ariano propõe um encontro do povo brasileiro com a sua cultura. Explora tradições e lendas populares nordestinas e adapta-as ao seu teatro. O castigo da soberba, recolhido por Leonardo Mota, transforma-se no julgamento dos personagens, após a morte, no céu. Através da História do cavalo que defecava dinheiro, também recolhida por Leonardo Mota, cria-se o "gato que descome dinheiro", vendido à mulher do padeiro por João Grilo. Finalmente, O enterro do cachorro, de Leandro Gomes de Barro, inspira, de certa forma, todo o enredo do livro, uma vez que o início das peripécias se dá com o pedido de Chicó e de João Grilo ao padre para que esse enterre o cachorro do padeiro e de sua mulher com honras em latim.

À maneira de Gil Vicente, o maior nome do teatro português até hoje, Ariano Suassuna recria os autos - peças teatrais de fundo religioso. Utiliza-se do humor, da linguagem simples e popular e do fundo moralizante, assim como Gil. Apesar do perdão a todos os pecadores no final de Auto de Compadecida, o autor critica os interesses da Igreja (que facilmente poderia ser aplicado aos interesses de todos nós) em dois momentos principais. Primeiro, quando o padre recusa-se a enterrar o cachorro do padeiro por ser contra os valores da instituição. Entretanto, muda de idéia e aceita de bom grado enterrá-lo ao saber que se trata do animal do grande Major Antônio Moraes. Segundo, quando surge o testamento do cachorro, favorecendo o sacristão com três contos de réis, o padre com quatro e o bispo com seis. As honras em latim são rapidamente aceitas e realizadas.

A nova edição, lançada em 2005, ainda conta com uma análise de Braulio Tavares sobre a obra, uma breve biografia do autor e ilustrações de Dantas Suassuna.

Tanto quanto ser visto nos palcos - ou no cinema, ou na televisão -, Auto da Compadecida deve ser lido. O trabalho desse membro da Academia Brasileira de Letras deve ser (re)conhecida por todos, já que ele escreve para todos e sobre todos.

Non-Stop crônicas do cotidiano




NON-STOP, lançado em 2001, é o 11º livro escrito por Martha Medeiros. Através do subtítulo, crônicas do cotidiano, todo o enredo da obra é resumido.

Mais uma vez, Martha, ao escrever, não foge do seu principal tema: o sentimento humano. Com uma escrita simples, aconchegante e agradável, fala sobre problemas conjugais, crises em relacionamentos, inseguranças em acreditar e investir no amor, medo de seguir em frente, ousar ser diferente. Tudo isso com um toque sutil de humor.

Dentre todas as crônicas, destaco algumas. Quanto vale um sim envolve a nossa autoconfiança em não desistir frente os nãos da vida e esperar, confiante, os sims que virão. Nada passa destrói a idéia de que tudo na vida um dia passa, que todas as dores se cessarão. E acrescenta mais. Afirma que "tudo isso vai, aos pouquinhos, formando quem você é". Pirâmide de erros propõe uma reflexão sobre o filme Magnólia; consequentemente, sobre os nossos atos, o nosso individualismo e falta de amor. Problemas que começam na infância e refletem-se na idade adulta.

NON-STOP é um ótimo livro de crônicas jornalísticas - e não literárias, como alguns críticos vêm classificando-as. O divertimento é garantido, embora o melhor resultado da leitura seja uma olhada bem a fundo no nosso interior e a proposta de alguns questionamentos a respeito do que somos e do que queremos ser.

Dois irmãos




Ganhador do prêmio Jabuti de melhor romance em 2001, Dois irmãos fala do ódio, do (não) relacionamento dos gêmeos Omar e Yaqub e da decadência de uma família manauense de classe média. Embora seja um tema não muito criativo - já explorado, inclusive, por Machado de Assis em Esaú e Jacó -, Milton Hatoum conquista seu leitor, especialmente, pelo modo como conduz seu enredo. Deixando-nos sempre cheios de dúvidas a respeito dos personagens, o autor brinca conosco, induzindo-nos ora a um caminho, ora a outro. A interpretação final cabe a nós próprios.

A narrativa inicia-se no início da década de 1920, percorre 40 anos e chega ao seu final na ditadura militar dos anos 60. Halim, um imigrante libanês, chega a Manaus e apaixona-se por Zana, filha de Galib, dono de um restaurante. Após o casamento, nascem os gêmeos - de personalidades completamente opostas - e Rânia. A história nos é contada pelo filho da empregada Domingas, cujo nome só será revelado nos últimos capítulos, trinta anos após o que nos é relatado.

Há dois pontos interessantíssimos no livro. O primeiro diz respeito à paternidade duvidosa de Nael (o filho de Domingas). Ao longo do romance, recebemos pistas. Yaqub é o preferido da empregada; não raramente encontravam-se no quarto dela para conversarem. Omar abusou sexualmente de Domingas "numa noite em que chegou muito bêbado". Em certo momento, ela diz que o caçula a possuiu "com a força de um homem" e que com ele, ela "não queria". Por último, surge a dúvida do chefe da família em apenas uma frase: "Tu nasceste quando o Halim brigou em praça pública". A tal briga resulta de fofocas que acusavam o marido de Zana de divertir-se "com as índias, com a empregada, com as mulheres da vida". Vale registrar também que o nome do narrador é dado pelo próprio Halim, por tratar-se do nome de seu pai.

O segundo refere-se a duas possibilidades de incesto. A mais visível é de Rânia com Yaqub, e uma passagem do texto é bem sugestiva: "Ainda chovia muito quando a vi subir a escada, de mãos dadas com Yaqub; entraram no quarto dela, alguém fechou a porta e nesse momento minha imaginação correu solta. Só desceram pra comer". A outra depende da forma como o leitor interpreta a narração. Se ele acredita que Halim possa ser o pai, então o incesto se dá quando Rânia se entrega às investidas, aos beijos e abraços de Nael.

Com esse excelente livro - totalmente merecedor do prêmio conquistado -, Milton Hatoum ingressa na literatura brasileira contemporânea de qualidade.

O desafio amazônico




Samuel Murgel Branco, biólogo e professor da Universidade de São Paulo, escreve sobre a riqueza da fauna e da flora amazônica, sobre os povos nativos, sobre a história da colonização e dos principais ciclos econômicos. Denuncia as atrocidades cometidas contra a floresta – destruição, desmatamento, queimadas, projetos governamentais mal planejados e mal sucedidos -, os riscos para um futuro não muito distante e apresenta alternativas para um desenvolvimento sustentável na Amazônia. Um ótimo livro, porém, infelizmente, um livro a respeito da ignorância da população brasileira, do descaso das autoridades governamentais e da cobiça do “explorador” amazônico.


De certa forma, os capítulos seguem uma cronologia. Os primeiros apresentam as características geográficas da região, seguidos pelo relato histórico dos primeiros exploradores e suas tentativas de colonização. As lendas e mitos – tanto indígenas quanto dos homens brancos – ganham um capítulo a parte.

Passando pelos principais ciclos econômicos, como o da borracha e da mineração, chegamos aos grandes problemas atuais enfrentados pela Amazônia. O despreparo e a total incompetência de alguns governantes levaram à idealização e à construção (?) de obras faraônicas, que, no fim, mais prejudicaram do que desenvolveram. Muitas das mais altas árvores da floresta possuem suas raízes proporcionalmente muito curtas. Suas bases de sustentação consistem em escorarem-se umas nas outras através de suas copas e ramagens. Ao desmatar, em uma obra, alguma área sem planejamento prévio ocorre um “efeito dominó”, algumas vezes ferindo, ou mesmo, matando trabalhadores, como aconteceu mais de uma vez ao longo da milionária Transamazônica. Outro exemplo de obra equivocada é a represa de Balbina, construída no rio Uatumã, ao norte de Manaus. Sem conhecimento da topografia do local, 2 mil e 300 quilômetros quadrados de mata foram inundados - prejudicando, inclusive, a fauna aquática – para uma quase inútil geração de energia elétrica: 200 megawatts de potência (compare com a Usina de Itaipu, que gera 12 mil).

Durante a década de 1960, o governo federal criou uma legislação que incentivava a ocupação da Amazônia e acabou promovendo equívocos em função da forma como esses projetos foram implementados. O norte brasileiro virou terra de especulação. Incentivos fiscais de até 100% para quem quisesse "empreender". O resultado foi a expansão do corte e exportação da madeira, aumento das áreas de produção de soja visando o mercado externo e implantação de grandes fazendas de gado, que reduziu a totalidade de mata nativa em detrimento das "áreas de pastagens".


O último capítulo é destinado à esperança: soluções são expostas. Investimentos em pesquisas de remédios, cosméticos e novos alimentos trariam lucro não só para o Brasil, mas também para todo o mundo. Plantações e criações de animais são possíveis, desde que haja um reflorestamento. Da mesma forma, é possível também a exploração de madeira, borracha, guaraná... São resoluções possíveis e viáveis economicamente, basta haver iniciativa e vontade.

Rubem Fonseca




Uma das maiores expressões da literatura nacional, Rubem Fonseca também é um dos meus autores preferidos. Com seu talento indiscutível, sua linguagem um tanto quanto irônica, conquistou-me, primeiramente, com Feliz Ano Novo, livro de contos que li em 2006, e desde então não consegui largá-lo. Virei fã.


Nascido em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 11 de maio de 1925, Rubem é formado em Direito, iniciou sua carreira na polícia (talvez essa seja sua grande inspiração para muitos de seus contos situados no subúrbio carioca, e personagens delegados, inspetores, detetives particulares, advogados criminalistas, ou, ainda, escritores) em 1952 e na literatura em 1963, com o livro de contos Os prisioneiros. Escreve também roteiros cinematográficos, muitos dele premiados.


Semelhantemente a Dalton Trevisan, Rubem Fonseca também prefere o anonimato. São raras as entrevistas, fotos e aparições em programas de televisão ou revistas. Há um conto de Feliz Ano Novo (o último, por sinal) - que talvez tenha sido o que mais me fez admirar o autor - em que ele escreve uma entrevista entre um escritor e um jornalista. O jornalista mostra-se inoportuno, inconveniente, e o escritor, sempre superior. O conto (e o livro) é finalizado com as seguintes frases: (Jornalista) - Esses escritores acham que sabem tudo. (Supervisor do Jornalista) - Exatamente por isso são tão perigosos. Depois de virar a contracapa, finalizando, assim, a leitura, imaginei o rosto de Fonseca: um sorrisinho nos lábios, um olhar ao longe, sentindo-se satisfeito por essa debochada tão sutil e tão talentosa.


LIVROS PUBLICADOS NO BRASIL:

( ) Os prisioneiros (contos, 1963)

( ) A coleira do cão (contos, 1965)

(x) Lúcia McCartney (contos, 1967)

( ) O caso Morel (romance, 1973)

(x) Feliz Ano Novo (contos, 1975)

( ) O homem de fevereiro ou março (antologia, 1973)

( ) O cobrador (contos, 1979)

( ) A grande arte (romance, 1983)

( ) Bufo & Spallanzani (romance, 1986)

(x) Vastas emoções e pensamentos imperfeitos (romance, 1988)

(x) Agosto (romance, 1990)

( ) Romance negro e outras histórias (contos, 1992)

( ) O selvagem da ópera (romance, 1994)

( ) Contos reunidos (contos, 1994)

( ) O Buraco na parede (contos, 1995)

(x) Histórias de Amor (contos, 1997)

(x) Do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto (novela, 1997)

( ) Confraria dos Espadas (contos, 1998)

( ) O doente Molière (novela, 2000)

( ) Secreções, excreções e desatinos (contos, 2001)

( ) Pequenas criaturas (contos, 2002)

( ) Diário de um Fescenino (contos, 2003)

( ) 64 Contos de Rubem Fonseca (contos, 2004)

(x) Mandrake, a Bíblia e a bengala (novela, 2005)

( ) Ela e outras mulheres (contos, 2006)


*Uma breve observação: os (x) são os textos que já li. Preencher-los-ei todos com muito prazer e satisfação, assim pretendo.

O Livreiro de Cabul




Correspondente de guerra, a jornalista norueguesa Åsne Seierstad aproveitou a sua estada no Afeganistão e escreveu um ótimo livro relatando, principalmente, a cultura afegã.


Logo no prólogo a autora justifica a sua escolha em retratar a vida da família Khan. “Num país em que ¾ da população é analfabeta, o dono de uma livraria, letrado, com uma suposta boa condição de vida é algo um tanto quanto incomum”.


Sultan Khan, o “chefe” da família, apesar de todo o seu estudo, transparece o típico homem afegão: patriarcalista, tirano, conservador às mudanças e costumes. Dono de uma grande e influente livraria em Cabul, presencia a queima do seu trabalho três vezes. Uma durante a invasão russa, outra pelos mujahedin e a mais recente, pelos talibãs. Devido à total ignorância e ao fanatismo religioso, figuras e imagens eram proibidas durante esses regimes totalitários. Deviam ser queimadas e extintas, uma vez que para quem não sabe ler nem escrever, pinturas e fotografias representam uma ameaça aos preceitos impostos.


Embora Sharifa – a primeira mulher – e sua mãe e irmãs sejam contra, Sultan casa-se novamente, agora com Sonya, uma adolescente de 16 anos. Opiniões femininas não são respeitadas, nem aceitas. Uma escravidão disfarçada insiste em permanecer nos países muçulmanos.
Dois acontecimentos no livro marcaram-me bastante. O primeiro deles relata o banho das mulheres e seus filhos no Balneário público. Banheiros com chuveiros são quase inexistentes no Afeganistão. Retira-se a sujeira do dia do corpo através de pequenas bacias com água, e são limpos apenas os pés, as mãos e o rosto. Um banho “completo” nesses Balneários acontece numa freqüência média de uma vez por mês. Crostas cinzas da mistura de poeira, areia, gordura e lixo são esfregadas de forma violenta, até a “pele ficar rosa e esfolada”. Mais uma vez pensei e revoltei-me. Infelizmente a questão da água não é uma simples brincadeira. Não precisamos ir às áreas desérticas do globo para percebermos que a falta de água é um problema. A seca e o racionamento estão do nosso lado, dentro do Brasil e do Rio Grande do Sul. Será que a consciência virá apenas quando todos tomarmos banho igual aos afegãos?


A outra cena aborda o roubo de alguns cartões postais da livraria de Khan e a conseqüente prisão do ladrão. Não defendo bandidagem, mas a ação despertou o meu lado humano (se é que ainda posso usar essa expressão para caracterizar meus sentimentos), a minha compaixão e a minha indignação com a brutalidade e indiferença do acusador. O acusado (escapa-me o nome agora) trabalhava na livraria e sustentava uma família de cerca de 15 pessoas, dentre elas mãe, avó, esposa, filhos pequenos e irmãs. A fome e a subnutrição das crianças levaram o pai ao furto de 300 cartões, “impressos por um afghani e vendidos por, no mínimo, cinco”. Após a descoberta, o pedido de desculpas, a devolução dos cartões, a promessa de trabalho gratuito a fim de pagar a quantia roubada, Mansur – filho mais velho de Sultan – é encarregado do caso até a volta do pai do Paquistão. O progênito decide por esquecer a confusão, todavia seu pai é irredutível, e o acusado é preso, deixando a mercê da miséria e da degradação mulheres e crianças.


Finalizei a leitura do livro mais revoltada, inconformada e desesperançosa. Talvez por saber que existe muito mais do que li e que sozinha não posso fazer nada para mudar – e ninguém fará nada para me ajudar.

Literatura





Ontem, quando criei este blog, algo me chamou a atenção. Durante os "passos" de criação, um deles pedia para escolher o 'tema do seu blog". Havia 33 tópicos, entre eles música, cinema, política, comida. Espantosamente - ou talvez nem tanto -, não constava literatura. Será que fui a única maluca, dentre os 81912 blogs existentes, a querer escrever sobre livros e autores? Depois, todos reclamam que o país não cresce, não se desenvolve. Todos, inclusive os criadores dessa página, que viraram as costas para a cultura, a pouca cultura ainda existente neste país. Querem progresso como, se negam a educação literária? Um acréscimo de inteligência e humanidade a cada página folhada, tão necessário para a formação de um ser humano - espécie quase em extinção hoje em dia.


Li uma crônica do Moacyr Scliar, há alguns meses, dizendo que a literatura propriamente dita - romances, contos, novelas, poesias - pode extinguir-se. Uma pesquisa mostrava que a maioria dos homens achava perda de tempo ler qualquer coisa que não fosse sobre administração, economia, direito, pois não acrescentaria nada as suas vidas profissionais. Talvez nada de teórico, mas muito de sentimentos, de valores, de morais, tão escassos atualmente.


Tem um vídeo no youtube que eu gosto muito, titulado "Ler devia ser proibido" (http://www.youtube.com/watch?v=57hum9zwjZc). Infelizmente, se essa lei valesse no Brasil, pouquíssimas pessoas seriam presas ou punidas.


Acho que o mundo mudou, e eu continuei presa aos anos 70/80, onde grandes filósofos e escritores inspiravam revolucionários a lutar por um mundo melhor, trazendo-nos esperança. Ainda não me encaixei (será que um dia poderei?) nessa individualidade egoísta capitalista do século XXI.

Mandrake a Bíblia e a bengala




Último livro lido. Mais uma vez Rubem Fonseca não me decepcionou. Um ótimo livro, no melhor estilo de suas novelas. Uma Bíblia famosa some de um museu (infelizmente me fugiu o nome) e três dos principais suspeitos contratam os serviços do advogado criminal, Mandrake. Esse envolve-se com a principal suspeita e passa a não enxergar certas "pistas" que poderiam levá-lo ao esclarecimento do roubo. No final, tudo é descoberto (claro que não contarei) e inicia-se um novo caso. Mandrake leva 3 tiros no joelho e arredores, tendo de utilizar bengalas para locomover-se. Um empresário influente do país é assassinado e a arma do crime é exatamente uma das bengalas. Mandrake passa a ser o principal suspeito, pois além de tudo ainda era amante da esposa do morto.


Mais uma leitura exemplar, a cada página fui-me tornando apaixonada por suas novelas. Depois de a Bíblia e a bengala, e' Do meio do meu mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto tornei-me fã, da mesma forma como a sou de seus contos.